A "Mulher da Casa Abandonada" e a falta de menção a fontes no jornalismo
Podcast de Chico Felitti, que agora estreia como série no Prime Video, omitiu fonte que o inspirou.
Escrevo sobre a cidade de São Paulo, suas curiosidades e histórias desde 2006. Muito antes de pensar em criar o São Paulo Antiga ou mesmo de colocar os pés numa faculdade de jornalismo. Na época eu era apenas fotógrafo, com estúdio em um prédio na Vila Buarque, e blogava apenas como uma distração.
O tempo foi passando e o que era um hobby virou um trabalho, hoje consagrado e reconhecido, que deixou de figurar apenas no meio virtual e transformou-e num instituto cultural com sede própria onde mantenho não só meu escritório, como biblioteca, acervo, sala de aulas e até uma área destinada a gastronomia, gerida pela minha esposa.
No decorrer desses já longos 16 anos escrevendo sobre São Paulo além do próprio São Paulo Antiga trabalhei em veículos como na MTV Brasil, Veja SP, Folha de S.Paulo e até em revista de clube de futebol. Sempre com pautas inéditas, interessantes e curiosas, todas descobertas em minhas longas pesquisas.
E claro, nesse período todo, já tive dezenas de perrengues, como textos roubados, foto publicadas sem autorização (em capa de livro!) que rendeu processo, e até demissão de um colega de profissão de um jornal da capital paulista, que copiou um texto meu e mandou bala numa edição impressa, achando que eu não iria ver (sou assinante do jornal, tolinho).
Não sei o que essas pessoas que copiam conteúdo alheio aprendem na faculdade, se é que a fizeram, no entanto quando estudei jornalismo na UniSant’Anna aprendi, com minha querida professora Ana Vasconcelos, muito sobre respeito à fonte e especialmente ética. Ética essa, aliás, cujo código pode ser lido na íntegra no site da Fenaj.
Eu entendo claramente que nesses dias tão difíceis para o jornalismo, com anualmente centenas de novos profissionais sendo despejados no mercado e com o estado terminal da mídia impressa e dos jornalões, a concorrência é grande. Isso gera medo de passaralho e, de ao invés de lutar por um prêmio de jornalismo, acabar seus dias como assessor de imprensa de alguma empresa ou de político.
Todo esse textão para dizer: jamais deixem de mencionar a fonte. E foi exatamente isso o que aconteceu quando Chico Felitti lançou o podcast “A Mulher da Casa Abandonada” que agora virou uma série de TV.
Veja bem, eu gosto do Felitti e já troquei conversas com ele no WhatsApp algumas vezes, o convidei para vir aqui no Instituto São Paulo Antiga e li dois livros dele. É um cara extraordinário, divertido, escreve muito bem e seu trabalho é nota 10. Mas preciso dizer aqui: ele errou ao nunca creditar às claras a fonte de onde ele achou a história que o fez ainda mais conhecido. Afinal não fosse essa publicação que fiz em 2010 (clique aqui) talvez essa história não tivesse saído do papel.
No primeiro episódio do podcast “A Mulher da Casa Abandonada” por volta dos 34’17” é possível ouvir isto:
“…E não demora muito para eu descobrir. Porque a casa abandonada é famosa. Descubro na primeira busca no Google que o casarão é tradicional.
A Casa Abandonada foi construída na década de 1930. O imóvel tem três andares e 24 janelas e é tão famoso que tem até nome próprio: a casa foi batizada com o nome de um médico famoso, pai da mulher que hoje mora nela. Originalmente, tinha vitrais com imagens náuticas, como barcos e mares revoltos.”
A busca no Google hoje em dia, evidentemente, gera inúmeros resultados devido ao enorme buzz gerado pela série. Contudo naquela época basicamente só existia um único lugar que descrevia isso que ele menciona: o site São Paulo Antiga. O “print” abaixo é atual.
Mas Felitti reduziu a descoberta a uma mera “busca no Google” ignorando a relevância da minha pesquisa, feita 10 ou 12 anos antes. É como hoje onde os estudantes usam o Chat GPT para montar seus resumos de livros e trabalhos escolares para passar a perna em professor. A inteligência artificial, antes de dar a resposta ao estudante, aprendeu o assunto roubando ops, lendo, de algum site, blog ou portal.
Para Felitti, talvez tenha pensado que citar a fonte nominalmente tiraria o brilho da sua descoberta, não sei. Mas o São Paulo Antiga para ele ficou descrito apenas como “um site de arquitetura”. E gente nem de arquitetura o site é, mas de história e curiosidades da cidade.
Leiam a transcrição e em seguida alguns dos prints do que foi falado no podcast, mas saiu “de um site de arquitetura” nos inúmeros comentários do artigo:
“… Mas não é só a casa que tem história. A Mulher da Casa Abandonada, eu descubro, tem uma história que poderia estar num filme de terror. Um site de arquitetura que lamenta o estado deplorável da casa. Comentários ecoam a lástima que é ter um imóvel importante jogado às traças em uma rua rica de São Paulo…”
Deixando claro, embora não citado no meu artigo, eu já conhecia toda a história da Margarida Bonetti nos Estados Unidos. Mas optei por não inserir no artigo por dois motivos:
1 - O São Paulo Antiga ainda era algo muito modesto, tinha receio de que citar essa história me trouxesse um processo por parte de Bonetti que terminasse por vez com o meu projeto.
2 - Achei melhor, portanto, focar na história do imóvel e do seu primeiro morador, o pai de Margarida. Mas liberei nos comentários que alguém publicasse algo sobre a mulher. E assim foi.
Enfim o podcast foi um grande e merecido sucesso e abriu espaço para Felitti produzir outros na sequência. Todos muito bons, é verdade, mas nenhum deles sem chegar perto do hype que “A Mulher da Casa Abandonada” trouxe.
Nesses três anos desde que o podcast foi lançado em nenhum momento houve um convite para um bate-papo (ou um podcast?) para conversarmos sobre o tema ou fazer uma justa menção à fonte que permitiu que hoje a história se transformasse numa série televisiva.
Acima, vitrais da casa mencionados no trecho citado no podcast:
“…Originalmente, tinha vitrais com imagens náuticas, como barcos e mares revoltos. A casa é uma sobrevivente. A única que resta na rua, de pelo menos 20 que caíram para dar lugar aos prédios que estão lá hoje…”
Meu trabalho à frente do São Paulo Antiga visa contar a história da cidade, conto com poucos apoios financeiros e vivo na corda bamba porque poucos se interessam em apoiar crowdfunding culturais. Vale mais a pena gastar um dinheirinho no OnlyFans! Tenho certeza de que com a grande repercussão de “A Mulher da Casa Abandonada” se ele tivesse citado a fonte, até por eu ser um colega de Folha de S.Paulo na época, teria ajudado muito.
Mágoa? Sim, um pouco. Raiva? Nenhuma. Mesmo assim vou assistir a série e tenho certeza de que irei gostar. Afinal sem meu trabalho prévio talvez a série sequer existisse.
Sinto muito pelo o que aconteceu. Ainda bem que você postou esse texto aqui, acho importante que fiquei registrado e que as pessoas saibam! E parabéns pelo trabalho, eu acompanho faz tempo já!
Como historiador, sei da importância que a fonte tem, afinal, sem ela, é muito difícil embasarmos o nosso trabalho. Sinto pelo ocorrido. Desonestidade sim.